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Para Paulo Fernandes

Com essa estranha mania de sair falando dos livros que leio, das descobertas da literatura contemporânea, desse meu encantamento pelos escritores e poetas, fui me envolver numa situação inusitada.

Foi no tempo da faculdade, há duas décadas. Antes de começar a aula, propriamente dita, o professor perguntou o que a gente estava lendo, no momento. Os colegas falaram de clássicos em língua estrangeira, outros ostentavam os lançamentos nas áreas da Linguística e Teoria Literária.

Quando chegou minha vez, disse que estava quase terminando de ler a obra “O amor que acende a lua” cujos textos eram diversificados, ora carregavam elementos da crônica; ora lembravam contos e, em muitos momentos, passavam a impressão de que eram ensaios. Todos da sala começaram a me olhar de um jeito estranho. Era como se fosse um ser de outro planeta que tivesse acabado de chegar ali. Paciência. Continuei.

Não só nas crônicas daquele livro, mas em tudo que o escritor produziu, o que mais me encanta é a forma como trabalhava as metáforas, compunha as alegorias a partir da Filosofia, culinária, poesia e jardinagens.

Ao ler os textos daquele título, a gente sempre esbarra em apontamento de Nietzsche, descansa os olhos da vida urbana em um passeio com o mestre Alberto Caeiro, um dos heterônimos  de Fernando Pessoa, tudo isso em uma linguagem, aparentemente, simples, porém envolvente.

À medida que eu falava, senti que toda sala olhava para mim e para o professor. Esse nada dizia, porém, sua cara de indiferença, descaso, que havia comido algo estragado era desoladora. A vontade de interromper o tempo de exposição do estudante empolgado era grande. O jovem aprendiz queria aproveitar cada segundo daquele instante de resenha. Só que chegou o momento do fim, foi quando ele sinalizou. Era tempo de começar a aula.

 – Só toma cuidado para não ficar tolo igual o autor dessa obra que indicou, ok? – disse com indelicada paciência.  

Não entendi foi nada. Alguns colegas seguraram o riso, outros ficaram chateados. Só no intervalo fui saber que aquele professor odiava com todas as letras o tal autor de quem eu falava com tamanho entusiasmo.

Mais tarde fui descobrir que, de um modo geral, Rubem Alves era bastante criticado no meio acadêmico. Tenho a impressão de que era por conta de suas ideias e enorme sucesso.

A propósito, finalizo esta crônica citando um aforismo de T.S Eliot, que está na obra “A alegria de ensinar”, também de Rubem Alves:

“Num país de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.

Professor, estou ainda mais tolo.

Era o canto de pássaro mais estridente da rua. Passei o portão e lá estava o canarinho em cima do poste, que fica de frente pra nossa casa. Cantava de estalar.

De repente sai da casa dele lá o seu Geovane, nosso vizinho e dono do amarelinho fujão.

– Toda vez que foge, ele não vai pra longe.

– Que canto incrível! Há quantos anos não ouço o canto de um canarinho, meu Deus!

– O senhor sabe por que ele tá cantando assim, afinado, alto, de parar o quarteirão?

– Sei não.

– Em conversa de passarinhos, ele está chamando a fêmea. Por isso que esse canário sempre voltou.

Nessa hora, eu não sabia se apreciava o canto ou buscava entender a história de amor. que o moço me contava:

– ... ele só vai se a companheira for.

 


Caderno Azul

... farelos por aí ...

Crédito da imagem: Yassir Abbas

 


O seu Ronaldo ficou encantado com o par de tênis, o presente azul da garota de 12 anos.  

– Vai ver que foi por conta daquela música All Star que o Nando Reis fez pra Cássia Eller.

– Na verdade, não. Eu vi no filme Eduardo e Mônica com minha mãe.

– Êta família pra gostar do Anos 1980.

 


Caderno Azul

... farelos por aí ...

Crédito da imagem: Dan Cristian  Păduret 

 

O que será do futuro dessa menina? Que Deus a abençoe! Porque a julgar por agora, há dificuldade para descrever as atitudes da criança. Para se ter uma ideia, ela jamais aprovou o termo pré-adolescência.

 

Lá pela casa dos dez anos já era fã do Queen, mas nunca negou o gosto pelos clássicos da música: Chopin, Mozart, Bach e Beethoven.

 

Quando o assunto é livro ou filme, seu gênero favorito é a biografia. Adora saber dos bastidores da vida e da obra dos artistas. Com isso, sempre deixa escapar algumas curiosidades nas reuniões familiares.  

 

Por falar em família, recentemente, a menina aprontou uma boa com o pai.

 

“Vai chegar um livro que a mamãe comprou na internet. E é você quem vai ler para mim.”

 

O pai, coitado, um pouco encantado com a disposição das duas, ali sem entender nada, soltou um “Está bem”. A menina já tem doze anos e podia ler sozinha, não?

 

“Segundo o autor, o livro é dedicado aos pais. É para você estudar e aplicar os conceitos que estão lá. Você não vai se arrepender”.

 

Não vem ao caso indicar o nome do livro; mas é com orgulho e gratidão que o moço vai explicitando os conceitos do tal livro para a filha. Para isso, ele vem aproveitando as tardes de sábado.

 

A menina, a cada encontro, vem registrando as lições no caderno vermelho. Dizem por aí que até na segunda e terça de Carnaval, os dois estavam discutindo o comportamento de alunos e familiares que não dão a mínima para os professores.

 

Pelo visto, desse capítulo aí que eles estavam estudando, foi um folião de ideias. Com licença, vou ter que parar de escrever, pois ela acabou de me chamar na sala: “Vem logo, pai. Quero que você veja a budista que falei outro dia”


...

farelos por ... 

O retorno ao Ensino Presencial possui – entre muitos ângulos e desafios – uma perspectiva que flerta com o cômico.


Começando pelo uso da máscara:


recordo-me que no primeiro horário do dia, eu não enxergava os alunos: óculos visivelmente embaçados.


Para alguns estudantes, eu parecia um fantasma perdido de costas para o quadro branco.

 

Lá pelas tantas do sexto horário, 12h15, uma aluna muito gentil me instruiu:

 

– Farelo, coloque seus óculos bem na ponta do nariz, assim não terá problemas.


E não é que está funcionando até hoje?! Embora fique com a aparência do célebre professor Pardal... tudo bem. Resolve. Muito obrigado, querida L.S!


Seguimos com os abraços contidos:


vira e mexe surgem uns alunos lá do século passado*, gritando desesperados, felizes pelo reencontro, já chegam com os braços esticados para o abraço.


Seguindo os protocolos, grito mais alto ainda: a aglomeração! Cuidado com os contatos! Vamos deixar isso para depois, gente!


Felizmente nossos alunos respeitam, a gente conversa e mata a saudade pelos sorrisos do olhar.


E tem os novatos! Deles a gente só conhecia a voz:

 

– Fala, Farelo! Bom demais?

 

– Acho que você não está me reconhecendo.


Claro que não, às vezes, tive vontade responder. Você usava um avatar na plataforma, meu querido.


Ah, depois de tanto vexame, sentindo-me em outro planeta, resolvi adotar a seguinte estratégia: “Quem é você?”


Se algum colega ainda não usou essa técnica, vai por mim: funciona. 


Uma última curiosidade, se a crônica permitir. De tanto subir e descer escada, andar pelo colégio, parar de comer toda hora, vamos chegar bem ao verão.


Aos poucos, a gente vai se adaptando aos exercícios de desaprendizagem, como bem disse vovô Manoel.  


O que você me conta desse retorno ao Ensino Presencial?

 

 


* século passado: modo carinhoso a que me refiro ao período anterior à pandemia.

 

... farelos por aí ... 

 

Um pouco antes das 09h, corri ao sacolão. E lá, exatamente no caixa, uma garota roubou a cena.

 

A pedido da mãe, ela pegou o pacote da promoção, completando as compras. Voltou para a fila, retirou o cartão de uma pequena bolsa, informou que o pagamento seria no débito.

  

A mãe, toda orgulhosa da atitude da pequena, acompanhava todo o processo. Os clientes pararam para assistir à desenvoltura daquela garotinha nos seus 07 anos.

 

– Meus parabéns! Você é muito esperta!

 

– Muita obrigada! Eu que cuido das finanças da minha mãe.

 

Todos os clientes riram e elas saíram carregando as sacolas.

 

Eu ainda nem tinha feito o pagamento da minha pequena compra, quando ouvi:

 

– Moço! Moço! Eu te conheço!

 

Nesse tempo com máscaras, vira e mexe a gente acaba não reconhecendo alguns moradores da quebrada. Acontece.

 

– Você é o moço dos livros! Eu estudei teatro com sua mulher.

 

De fato, eu não me recordava. Parece que a pandemia já dura uma década. A gente se perde ou perdeu. Não é mesmo?  

 

Assim que se reapresentou, ativei todas as suas atuações no palco e nos bastidores da Cena. Por alguns segundos, um enredo se desenrolou nas páginas da minha memória.

 

A menina contou que mudou de casa, está morando em um apartamento agora. Ao final, passou o novo número do telefone da mãe, que aguardava no outro lado do passeio.

 

– Quando começar o teatro você pede a professora para ligar para minha mãe?

 

– Claro!

 

– Promete mesmo, moço?

 

Aquela antiga aluna mudou o ritmo do meu dia. Aquela menina, provavelmente não sabe, mas no início daquela manhã trouxe um feixe de luz para toda família. Ela foi o assunto do dia, tema especial para essa crônica com tinta de recomeço.   

 ...

 

Dessa vez eu ultrapassei a linha dos absurdos na vida de um lerdo. 

 

Já voltei pra casa carregando as compras e deixei o carro no estacionamento da feira. 

 

Já saí com o chinelo trocado, com a máscara de cabeça pra baixo (quem nunca?)

 

Hoje entrei no carro de um estranho. Sério! Não era para roubar nem para ser transportado. Como sabe não sou mecânico e muito menos trabalho em lava-jato.

 

Carro da mesma cor, mesmo modelo, parado ao lado do automóvel deste lerdo que vos escreve? Não deu outra. 

 

 

Entrei, coloquei as sacolas no banco do passageiro. Quando olhei para o painel, o câmbio, soltei o nosso típico "UAI"?

 

Na fila do caixa, o proprietário rachando o bico da minha façanha. E os funcionários não perdoaram: 

 

"Que é isso, hein? Onde cê bebeu dessas, Farelo?" 

 

"Olha só, gente, ele acha que pode ir entrando em qualquer carro". 

 

À medida que um explicava ao outro o que se passava, fui tornando o protagonista do vacilo. Não sabia onde enfiar a cara.

 

Pedi desculpas ao proprietário do veículo com mesma cor, mesmo modelo, parado na mesma posição, provavelmente o mesmo ano.


Também quem mandou o cara não travar as portas?

 

Escreveu: Alfredo Lima

Ilustrou: Marci N.

 

O moço que encontrei na padaria – essa manhã – comemorava a ousadia de ter saído de casa às 05h45 para fazer atividade física.

 

A barriga que exibiu clama pelo desaparecimento.

 

Indiscreto, o moço apontou o meu excesso de tecido adiposo: “a atividade física é urgente para todos nós, parceiro”.

 

O moço que encontrei na padaria – essa manhã – é pai de um garoto de aí na casa dos 07 anos. Lindo!

 

O moço que encontrei – essa manhã – é casado com uma jornalista com quem convivo por quase duas décadas.

 

A esposa do moço que encontrei – essa manhã – me convidou para a festa do seu aniversário na data de hoje.

 

Era um sábado com resquícios de chuva. Casa grande, muitos amigos, muita alegria. Nessa festa comecei a namorar a amiga da esposa do moço que encontrei na padaria pela manhã.  

 

Será que o moço sabe que hoje estamos comemorando 19 anos de namoro? E como será que ele vai comemorar o aniversário da esposa dele?


... farelos por aí ... 

                             

Eis uma das façanhas que só as mulheres conhecem e conseguem praticar com desenvoltura, maestria. 


Para mim, uma descoberta?!


Descobri? Aliás, passei a por sentido, a lançar um pó sobre aquelas ações todas, muitas vezes, invisíveis em muitos lares brasileiros. Confesso que isso tudo só me ocorreu por conta da pandemia. Uma lição. A necessidade.


Eu descobri. Assim, sinceramente... posso dizer que serei um eterno aprendiz, mas isso importa e festejo a descoberta em si.


Eu descobri que para cumprir as tarefas, as obrigações que nos consomem, somem com nossas energias, as mulheres brilham no “Jogo do Enquanto”.


 Ah, para você entender, apresento-lhe meus primeiros passos, após a caminhada diária:

 enquanto a água do café ferve, tiro o carro da garagem, volto e preparo o coador, o filtro, coloco uma colher de pó. Enquanto o café está sendo coado, exalando o cheiro que desperta todas as manhãs que ainda moravam em meu corpo, ouço uma canção sagrada de Bach;


 enquanto lavo as vasilhas do lanche ou jantar da última noite, ouço uma série de conversas sobre assuntos do universo da sexta arte e sonho um dia me encontrar disponível às ideias desprezíveis do mundo da pressa;  


enquanto os outros moradores buscam se atualizar diante dos noticiários tão monótonos, tão marrons, verifico se os protocolos das aulas daquele dia estão corretamente preenchidos, leio as mensagens que nos chegam em caixas.


Eis um pouco das manhãs! Acredito que não seja assim difícil esboçar meu desempenho no “Jogo do Enquanto”, ao longo do dia; mas lembre-se de que sou um aprendiz.


Por que temos dificuldade de reconhecer que esse jogo é real? Por que o tratamos como arranjos invisíveis, dentro de uma casa?  


Quero continuar aprendendo a respeito desse jogo. Quem sabe a escrita não vai me ensinar?

 

Ilustração: Marci N.

 
– O mundo vai acabar daqui a pouquinho, cê vai ver e ouvir.

– Vamos dormir, criatura. Uma chuva gostosa dessas e cê vem me acordar com o fim do mundo?

– Antes dessa chuva gostosinha, rolou um vendaval dos diabos que parecia o anúncio do próximo dilúvio.

– Ah, cê tá vendo muita televisão. Vamos dormir?

– Estou pensando como evitar o fim do mundo e isso a gente faz acordado, não?

– Então... tá, boa noite!

– Ela... vai ser assim ... ela vai mexer na cama e encontrar o Botas, vai fazer carinho na barriga dele. O Botas? Cê nem presta atenção nessas coisas, né? Botas é aquele macaquinho de pelúcia, que tá lá do lado do travesseiro dela. Quando abrir os olhos e não perceber que seu novo companheiro não está lá, pronto!

– ?

– O que aconteceu? Ele simplesmente se esborrachou no chão e se espatifou todinho.

– NÃO! É verdade isso? O que a gente comprou na última tarde?

– Ó, pensei que já estivesse dormindo. Não estava querendo apreciar a “chuvinha gostosa”?

– O mundo vai ficar pequeno. Ela vai gritar e acordar os vizinhos do prédio inteiro. Minha nossa! Como aconteceu?

– O vento foi muito forte. Nem com aquela barriga saliente e o peso do saco de presentes, o velho conseguiu enfrentar o vento dessa noite.

– Meus Deus! E agora?

– Vamos ter que bolar um plano antes da nossa filha acordar. Vamos pra perto da cama dela.

– Assim, talvez, a gente diga: “Filha, sabe aquele Papai Noel bonitinho que você ganhou ontem e estava dentro daquela bola de vidro transparente? Bem, fofinha, nessa noite, ele...

Lá do quarto:

– CADÊ MEU PAPAI NOEL?

 

Ilustração: Marci N.

 



Eu até estava apreciando a ideia de deixar o cabelo crescer. A Menina do Baú Vermelho estava festiva com a ideia. Claro que meu cabelo nunca terá aqueles os cachos cheios de brilho. Ela puxou as madeixas, a cor dos olhos, o jeito da mãe (Graças a Deus por isso).


Meu cabelo já foi de tudo nessa vida. Ainda criança, com o rosto carregado daquelas pintinhas miúdas, meu cabelo era da cor de ferrugem. Chamavam-me de russo como consolo. Depois que fui entender a diferença entre russo e ruço. Os primos e amigos dos tempos do primário foram bastante generosos. Meu cabelo era encardido.


 Com o tempo ele ficou castanho, depois atingiu um tom quase preto. Um tom caminhando para o escuro. Isso durou pouco também, pois antes dos vinte anos, uns fios brancos vieram para morar de vez na minha cabeça. E aqui se multiplicaram de forma assustadora. Como consolo do cunhado, sempre ouço: “Pelo menos você ainda tem cabelo”, uma gargalhada e, na sequência, ele alisa com orgulho parte da careca.


Já pintei meu cabelo de amarelo, na empolgação de um Carnaval dos anos 90. Tive a honra de zerá-lo, quando passei no vestibular, lá no início do século (Acho que nem existe isso mais de raspar a cabeça) Fui de uma ponta à outra.


Mais recentemente, no contexto da pandemia, cheguei a propor que só cortaria o cabelo com o retorno das aulas presenciais, ou com a descoberta da vacina. Assim, variei a relação com esses fios, ao longo desses anos que brotaram em 2020. A experiência capilar chegou ao fim.


 Bem, mas não acabou a esperança na descoberta oficial da vacina para a Covid-19. O desejo de retorno às aulas presenciais em 2021 está cada dia mais vivo, cheio de cores.


 Assim, em um exercício de confiança, fé, esperança, quero lhe fazer um convite: que tal se a gente pudesse cultivar uma quinta estação? Sim, aqui, entre a primavera e o verão, e se criássemos essa estação?  


Uma estação que refletisse as cores de todas as outras, que juntasse todos os fios para (reconstruir) os laços familiares que se perderam, romperam ao longo desses anos polares. Uma estação que venha renovar nossa paciência para com o outro, que nos permita ouvir, antes de julgar, compreender, antes de atacar, agredir com ofensas. A sincera estação da mesa, da roda de conversas, dos sorrisos e da liberdade para falar das coisas boas desse mundo, dessa vida.


 Para entrar nessa estação, já vou cortar o cabelo, mudar o visual. Bora?!


 Nas palavras do grande Vander Lee, que Deus o tenha em seus acordes e letras:

 É hora de cuidar dos nossos jardins!

 Abs,   

 

... farelos de uma nova estação por aí ...

   


– Não feche a janela.

– Está ventando muito. É perigoso você gripar.

– E onde a Fada do Dente vai entrar, pai?

– É verdade! Ela VEM nessa noite.

– Uma pena que ela só vem na hora que a gente tá dormindo, né?

– E se a gente deixar uma greta assim desse tamanho na janela? Ela passa?

– Nossa, pai, ela não é gorda assim. ELA não tá igual o senhor. É uma fadinha.

– Quem disse que não tem fada gordinha igual ao papai?

– Minha vó. Ela disse que as fadas voam muito e são todas magrinhas.

– Amo minha sogra! Sua vó é um espetáculo à parte.

– Pai, vem dormir comigo. Se não a fada não vem. Ou vai pra casa do meu coleguinha

– Tô indo.


Crônica: Alfredo Lima (Farelo) 

Imagem disponível em: https://www.dentistaorganizado.com.br



Há sessenta dias não escrevo uma linha.

Hoje por impulso, pelos ventos de um adágio do Ferreira Gullar, fui atirado, jogado na rua. Você está se perguntando: “Como assim?”

Só foi assistir aos vídeos no meio da manhã, entre prova para elaborar, casa para arrumar e outras mil e uma tarefas...

Bem, eu não sei explicar o porquê, o que rolou, nem quero.  

Verdade: eu senti uma vontade enorme de registrar uns GRITOS.  

Em silêncio, desci a escada do barracão, corri em direção ao portão. Pá! Eu estava na RUA!  E só foi um grito.

Não tinha ninguém para ouvir. Ai! E como aquilo me fez bem. Tive a impressão de sair de um banho lento e gostoso, daqueles que lavam a alma, sabe?  

De vez em quando um ou outro carro passava e eu ia atravessando as frases do poeta.

Que realidade estou inventando? Por que um verso é capaz de provocar tudo isso em plena manhã?

 Insight? Impulso? Arte. Pulso.

Peço licença, mas agora vou ali comprar um apontador e mais lápis. Tenho que transcrever a página deste dia que nos escreve.

Por que?

“Eu escrevo porque tenho o prazer de manifestar uma coisa que eu descobri”



... farelos por aí ...


Desculpe-me, leitor(a), mas a confissão que vou fazer não será do seu agrado, talvez.

Se por um acaso, você torcer o nariz, eu vou compreender. Você joga no time da maioria.

Confissão: eu gosto da segunda-feira!

Eu não sou louco. Depois de conviver com alguns japoneses, passei a curtir a segunda.

De acordo com alguns alunos, disparo um “bom dia” diferenciado, cheio de energia.  Não sei explicar.  

Sei que a última segunda-feira, por exemplo, entrou para minha História da Gratidão (mais à frente vou explicar melhor essa tal HG).

Nos primeiros minutos das sete, uma aluna me procurou na sala dos professores:

— Comprei um presente para você, Farelo!

Nossa! Poderia ser uma dúvida, crítica, reclamação, um comentário sobre a Disgreta Voadora (vulgo Enem).

— É diferente de tudo que li.

Nessas horas fico sem graça. Sem jeito, compreende? Meio bicho do mato. Será que merecia um presente tão distinto assim?

— Gostei tanto que fui à livraria e comprei um exemplar para cada pessoa especial do meu convívio. Espero que você goste também.

Bateu o primeiro sinal.

Recebi o livro da jovem. Primeiro, senti seu cheiro. Em seguida, encantei-me com sua lombada, cheio de brilho, dourada. Percorri os relevos da fonte, na capa.

Bateu o segundo sinal.

Tive tempo de ler os textos da quarta capa. Eram escritores e críticos apresentando a obra do escritor português que eu nunca havia lido.

Bateu o terceiro e último sinal.

A aula já ia começar. Abracei a aluna, em sinal de gratidão. Despedimos-nos. 

A vontade era não ministrar aula nenhuma naquela manhã. Não fazer chamada. Não passar exercícios. O desejo era sentar debaixo de uma árvore, desligar-se do tempo para poder ler o livro inteirinho.

Só no meio da tarde foi possível me perder naquelas páginas em branco, com desenhos em azul e metal, feitos pelo próprio autor. Ah, o nome dele: Valter Hugo Mãe. O título do livro? “O paraíso são os outros”.

Na manhã de terça, saí mostrando livro para todos os amigos. Na quarta, não consegui guardar as alegrias desse encantamento. Quando percebi estava na frente do computador, redigindo esta crônica.

Eis um capítulo da minha HG. Se você tivesse que escrever um livro sobre sua História de Gratidão, com qual dádiva você começaria?   

... farelos por aí ... 

  
           

Casei-me por engano, por insistência de um vendedor de livros. Ou ele me conquistou com as primeiras palavras?

Já nem lembro muito daquela tarde, depois de tantos anos também, não é mesmo?

Ele ligou uma vez, outra, outra e na última, não aguentei e rabujei:

“O senhor já ligou pra cá um montão de vezes. Cansa não?”

O homem mudou o tom de voz, derretendo-se em desculpas e acabou raptando toda minha atenção para seu trabalho, paixão pelos livros que vendia, divulgava. Amor pela vida e o arco-íris tem mais que sete cores e ... não resisti.

“Não precisa desligar agora, continue”.

Conversamos por mais umas duas horas no antigo e caro telefone fixo.

Ao final, fui certeira que nem flecha:

“O senhor é casado?”

Ele me deixou vermelha com um delicioso “não”.

“Então, pode ligar a hora que sentir vontade”.

Estamos ligados há quase quarenta anos”.

 

... farelos por aí ...

          Crédito da imagem: Adriana Galindo 


A nossa filha acabou de ler um livro inteirinho nessa tarde! 

– Venha cá, filhinha. Mostre para mamãe o livro que você leu.

A garota levantou “O dragão que era galinha-d´angola” e exibiu a capa na maior empolgação.

Em poucos minutos, desenrolou o enredo para nós e avisou: “Vou escrever a dica e depois você vai postar no blog, tá?”

– Eu indiquei um livro do Valter Hugo Mãe para minha esposa e ela ainda não leu. Tenho certeza de que ela vai adorar “O paraíso são os outros”.

– Opa! Parece que não estou aqui na frente de vocês. Espera lá. Vou falar...

Ela ficou brava e pá:

– E o que que está acontecendo com você, marido? Alguma doença?  Por que não tá lendo? Essa semana cê tá esquisito demais, viu?  Eu vou ler, mas quero a separação.

 Aí eu fiquei doido nessa hora. Essa mulher pirou, essa mulher está doida. Não pode ser.

– Separe desse computador logo, homem. Vai fazer o que você mais gosta na vida.  Tá vendo aí a lição que a nossa filha tá dando? Aproveite o recesso escolar e vaza daí da frente dessa tela.

Passei a mão em um título que já estava me esperando, dando bola, desde o início de tudo isso.

Ah, foi amor à primeira vista. Gostoso e veio cheio de histórias, comentários, reflexões, críticas.  Um diálogo envolvente. “Fomos maus alunos”

Fui para a cama mais tarde, saciado ou quase isso. Porque amanhã eu vou pegar outra história e vai ser assim em todos os dias da semana: um livro por dia.

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