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Preparei o café do jeito que você gosta: pouco doce, mas não muito forte.

Comprei aquela rosca que lembra tanto a roça, quitanda do interior das Minas Gerais.

Hoje você não vai preparar o almoço na correria de todo dia, Helena.

A cozinha está arrumada. Adiantei algumas coisinhas, ontem à noite, enquanto me desligava do mundo.

Tem feijão na geladeira. O arroz pré-cozido também está lá, viu? Descasquei alguns dentes de alho. Lavei a verdura que comprei bem cedinho, quando voltava da padaria. Sim, amor, deixei um tempinho na água sanitária.

Montei uma playlist de Bach para o momento que você for preparar o almoço de nossas filhas. O link está no seu WhatsApp.

Fale para a pequena Elis que o Sassá do Pé de Sonho vai nos enviar a nova versão daquela música de que ela tanto gosta: “Bicho de Bocão!” À noite, vamos brincar de “Quem é o dono da rua?”

Ah, não se esqueça de dizer para a Jessie que hoje é o Dia Internacional do Jazz. Para celebrar essa data tão especial, o poeta Marcus Vinícius de Souza vai mandar uma live, às 16:12 – bem britânico assim mesmo – no Instagram. Já fico até imaginando os ritmos que ele vai tocar no sax.

Está quase na hora de descer para obra, vou indo.

Mas eu vou voltar, Helena! Chegarei antes da dança das estrelas no escuro do céu. Antes do canto sagrado da Ave Maria.

Sim, eu não esqueci das máscaras.

Até logo,

F.


... farelos por aí ... 



Muito diferente da penúltima manhã, quando fui acordado pelas gargalhadas da minha filha que lia um livro muito envolvente.

Muito distante daquelas amanhãs que o despertador atravessa as últimas camadas do nosso sonho tranquilo e necessário.  

Acordaram-me nessa manhã com treta. Confusão daquelas que a gente, mesmo no barracão de cima, consegue ouvir com detalhes as desavenças de cada envolvido.

Podem me chamar de fofoqueiro!  Cronista da discórdia! Mas foi uma delícia nesse 21 de abril da Quarentena. Foi, gente.

Tapa, soco, pancada ... isso não rolou não.  O barraco do casal me despertou de tal maneira que passei a curtir cada frase, sílabas que disparavam uns aos outros. Saí do meu colchão e na janela, em silêncio, bebi cada movimento.

Ele batendo nas vasilhas e resmungando umas palavras carinhosas de dar medo.

Ela, imagino que descabelada, andava de um lado para outro, gritando frases de ofensas mil ao esposo.  

Uma pena! Em poucos minutos, os filhos acordaram:

– O que tá acontecendo?

– Gente, não deu nem cinco da manhã e o cês nesse bate-boca ?

– Ah, um tanto de gente com criança dormindo aí no lote, seus malucos.

 – Quem esquentou meu sangue foi o irresponsável do seu pai.

– Olha se isso é jeito de me tratar? Até parece que eu sou de te desrespeitar, Diva.  

– Gente, por que ocês estão brigando?

– A vontade é de esfregar sua cara nesse fogão, homem.

– Aí você está passando da conta, sua...

– Eu nem toco nas suas ferramentas, Romão.

– Perdi a paciência, a vontade de tomar café, a fome do almoço, a fome do dia inteiro.  

– Cê não vai levar marmita pra obra, pai? Hoje é feriado e o patrão não vai levar comida pros peões.

– Vai, vaza daqui, seu imbecil. Que morra de fome lá.

Escutamos a batida da porta (com uma força) e na sequência a do portão. Romão saiu cuspindo marimbondo. Até agora não deve ter se acalmado.

– Agora, que a senhora tomou um copo d´água com açúcar, dá pra explicar o que aconteceu?

– Brigamos porque seu pai queimou uma panela minha.

– A senhora tá de brincadeira, mãe?

– Não intromete, Maicon.

– Também estou vazando, gente.

Eu nunca imaginei que uma panela fosse provocar uma confusão dessas.

... farelos por aí ...





O título desta migalha é também do prefácio do livro “Fomos maus alunos”, de Gilberto Dimenstein e Rubem Alves.

Eu transcrevi essa palavra com um lápis amarelo e pensei na fome do “Quarto de Despejo”, que releio.

Passei um verde por cima de cada letra e a combinação verde-amarelo me provocou náusea, ao pensar no desgoverno do País.

Irritado, exalando desconforto à caneta que desequilibrava no branco do papel, passei um vermelho por cima da travessia.

Ao refletir sobre tudo que estamos vivendo, entendi que nossa travessia está 
s
  a 
    n
      g
        r
         a
            n
              d
                o.

... farelos por aí  ... 
Com o desenrolar dos fios que compõem o enredo da vida, a gente acaba por compreender os limites diante de cada arte.
Sempre deixo claro ao universo:
Não desenho nem casa com pauzinho. Nos meus traços, todo ser humano não passa de um boneco engraçadinho.
Quando o assunto é dança, não dou conta dos essenciais “dois pra lá/dois pra cá”. Na valsa, então? É cada pisão!
Nenhum dos outros irmãos, nenhum levou jeito para a dança.
João Londrina domina a arte da carpintaria, as tramas da engenharia. Sikin andou demonstrando talento nas esculturas de argila. Ele também encanta os familiares com som da gaita.
Adelson é quem podemos chamar de música em pessoa. Desconfia-se de que ele é um conjunto de arranjos disfarçados de gente. E isso vem de longe.
Ainda miúdo, tirava sons nos cavacos de madeira que encontrava na subida da ladeira. Luthier. Ele compõe pandeiro, tambor, kalimba e caixa de folia para artistas do mundo inteiro.
Adelson é a testemunha de que eu só consegui uma única vez. Claro, foi por influência dele.
Rodoviária. Dezembro de dois mil. O primeiro ano do mano na Grande BH. De dia, a rua, éramos camelôs. De noite, os estudos. Um ano sem o lazer do fim de semana, um ano longe de nossa mãe.
Não sabemos se foi distância das origens, o milagre que encontrou no irmão do meio o desejo, a vontade cantar.
Só sabemos que naquele dia entrei certo, exato ... no tom. Adelson até se assustou. Ele também não acreditava. Seu irmão estava afinado! O ritmo, o encontro das vozes, um Oceano em harmonia.
Tinha de ser na rodoviária? Tinha de ser mágico? E foi assim a única vez que não irritei as pessoas ... cantando.
... farelos por aí ...   



  


  





Meu menino carrega umas conversas atravessadas, assim de pacto com gente de outro mundo. Tá quase tudo nos desenhos que ele faz, escondido do pai, mesmo homem que acha que não tem mais solução o caso do Lany. É um caso perdido.  

            Eu nunca desisti. É isso que me traz aqui. Esse menino, a senhora vai vê, é de outro lugar. Eu num sei qual, mas é..

            Lá na Vila o danado é conhecido como “Mestre”, agora oia pra senhora vê! As outras mães ficam repetindo que meu Lany pensa demais, que vai acabar ficando doido.

O miúdo fala cantado, colorindo as pausas, vibrando com os pousos. Tudo tem ritmo nos tons que o “Mestre” escolheu para a vida.

– Ele pode fazer um teste por uns dias? É que o povo lá da Vila disse que a senhora ia ser a solução?

– Seja bem-vindo! Venham, venham todos! Venham conhecer o Lany! Será que ele é o personagem que falta para compor a peça do final do semestre? Dona Conceição, pode voltar para o trabalho. Lany vai ficar bem.  

No início, o menino era todo cheio de silêncio e atenção para os jogos dramáticos. A cada ensaio, seus olhos brilhavam mais e mais. Menos, cada vez menos triste, sem as sombras do barraco onde sobre sobrevivia com outras dezesseis pessoas.

Lany chegava cedo para aprender mais, conferir a marcação, treinar a entonação da voz, saber mais do perfil dos personagens.

Lany trazia o texto da peça com o maior cuidado do mundo, dentro de um saco plástico.

– Aqui dentro não suja, professora. Se caí no córrego não vai molhar. Tenho que cuidar daquilo que está mudando minha vida, não é verdade?

A professora ficou sem solo. O que se passava na cabeça do “Mestre”?

            – É dos novos amigos que você fala? O lanche está gostoso? Diga: o que vem mudando sua vida em tão pouco tempo?

            – É o teatro, professora! É o teatro! Só aqui sinto que sou alguém de verdade.

            A professora apenas abriu os abraços. Lany, agora, no ritmo da gratidão, correu lá e compôs o abraço.

Quando a mãe voltou, querendo saber do desempenho do miúdo, levou um susto daqueles:

– O que aconteceu? Lany fez alguma travessura? Cês tão chorando?

– Lany vai continuar conosco!

– Num tô acreditando. Esse menino só fala do cês lá na Vila. Só fica lendo umas páginas brancas que a senhora passou pra ele. Um papel aí pra entrar no time.

– Na peça.

– Ele conseguiu o papel, então?

– O “Mestre” não tem nenhum problema. Na verdade, Lany é um artista! E queremos que ele faça parte do elenco.

Daquele dia em diante, dona Conceição descobriu que um dos seus filhos nasceu para a Arte.





.. farelos por aí ... 

Crédito da imagem: http://portalamazonia.com/uploads/pics/beco-shutterstock.jpg
Queria muito poder contar pro meu garoto a versão que as mães recontam por aí:  

“Seu pai saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou”.

Não posso. Não consigo. Ele estava aqui até outro dia.

De vez em quando, fazíamos a feira da semana. A gente passeava na pracinha do bairro.

De vez em quando.

Ele nunca deixou de comparecer as suas festas e aniversário. Cê está me ouvindo? Nunca poupou na hora de comprar seus presentes. Muitos sapatos, só roupa da moda (tudo muito caro).

Seu pai sempre trabalhou muito. Um exemplo para seus tios.

Ele trabalha muito! Trabalha tanto que de vez em quando esquecia a data do nosso casamento, do meu aniversário. Sei que o dia das mães era ocê quem o lembrava via escola.

Seu pai nunca foi com a gente ao shopping. De todos os anos, só passou um Natal aqui.
“O cargo de confiança na empresa me priva de muita coisa, amor”.

Após ouvir essa frase centenas de vezes, deixei de me envolver com os assuntos da empresa onde ele trabalha, trabalha muito. Por outro lado, nas festinhas, já ia com o discurso prontinho: “O Jefferson está viajando a trabalho”.

Sempre a trabalho, meu filho! Sempre. Só que não desejo isso para sua vida, nem para a vida de nenhuma mãe, esposa.

“Meu pai casou com o trabalho? ”

“Antes fosse, menino, antes fosse. Já estamos partindo. Cê me ajuda com as malas? ”

“Tá de madrugada ainda, a hora, mãe. O que vamos fazer? ”

“Tem um hotel não muito longe daqui”

“?”

“Lá vou tentar esquecer meu marido, enterrar os últimos anos e rir do tanto que ele trabalhou para sustentar as duas famílias ...”

Nessa hora, depois de tanta conversa, o moleque despertou de vez e se desesperou com as lágrimas da mãe insone.

“Ele continua sendo seu pai”.

“?”

“O Uber tá chegando. Vamos? ”  

... farelos por aí ...


A Menina sabe o quanto o pai gosta da Clarice. Com frequência, ouço dela a seguinte pergunta: “Esse livro grossão de contos aí quem te deu? ”  Verdade! A Menina me presenteou com todos os contos da Clarice Lispector.

Por outro lado, o que essa Menina não sabia é que eu nunca tinha lido uma obra infantil da Lispector. Nenhuma

Outra surpresa!

Um dia desses aí, a Menina veio me mostrar um dos tesouros da rainha:

“Jura! Você pegou um livro da Clarice Lispector na biblioteca da sua escola? ”

“É ué! Você não está vendo? ”

É que pai fica meio abobado diante de umas cenas assim... (sem palavras). Não é todo dia que uma garota com quase-quae dez anos tira da mochila um exemplar de “O Mistério do Coelho Pensante”, concorda?         

“Não me conte nada a respeito desse livro. Nada de spoiler, viu? Vou ler e depois a gente conversa com a respeito, combinado? ”

A Menina balançou a cabeça em tom desafio:

“Vou ler muito antes de você”.

E leu.

Entre uma prova e outra, semana da criança, um resfriado, febre; o livro ficou esquecido no fundo mochila até o dia de em que não resisti...  

Fui gatinhoso. Sem pedir licença, sem saber se a tal Menina já havia percorrido aquelas páginas. 

Por que o nariz do coelho é cor-de-rosa?

O que os coelhos pensam dos seres humanos?

A verdade é que encontrei uma Clarice muito diferente daquela das obras adultas. Lúdica, muito engraçada, divertida para crianças de todas as idades. Inteligente como sempre. 

Li a o livro duas vezes por não acreditar que estava diante de uma narrativa tão agradável e tão cheia de laços, com diálogos mil.

A verdade é que estava louco para sentar com a Menina para contar minhas impressões. Fui todo entusiasmado e ela me brecou.

“Ah, você gostou? Eu amei. Mas acho que você vai pirar mesmo é com esse outro aqui.”

De repente, ela foi ao fundo do guarda-roupa e de lá me apresentou um outro título.

A Menina do Baú Vermelho exibiu toda contente o segundo livro infantil da rainha: “A vida íntima de Laura”.

Amanhã, ela vai completar dez anos. Esse é, sem dúvida, um dos maiores presentes que nossa filha nos dá: descobrir Clarice Lispector.   



... farelos por aí ...



Antes dos dez, um miúdo, lá nos ventos mágicos do entroncamento de Serro e Dom Joaquim, tive os primeiros exercícios de contemplação.

Toda quarta era dia de ir à fazenda do Seu Zé Ribeiro. Dia de comprar leite para tia Celeste, Chico e Mané.

Era um compromisso, uma tarefa que algum adulto determinou para um moleque arteiro. Sé que, agora, com o cantar dos anos, compreendo que não foi obrigação.

Claro que naquelas estacoes da vida, eu não entendia as lacunas da economia e o porquê de todo mês o preço do leite subir. O vaqueiro Lúcio afirmava “avise pros seus tios que a culpa é do presidente”.

Minha preocupação era outra: a solidão do caminho com suas voltas, o retorno na semana próxima.

Agora, vai tudo se iluminando... buscar leite para os três era uma forma de me enroscar ao silêncio. Foi a partir desse encontro que passei a escrever sem lápis, a dançar fora dos ritmos da vida comum.

“Esse filho de Eva está meio panado das ideias. Tão menino ainda”. É o que o povo diria se trombasse comigo em alguma encosta.

A cabeça tava lá na água suja pra pescar mandi de dia. O pé de manga lindo de flores. “Vai sê cada teteia, Zezé! ”

E o silêncio, um dia, correu atrás dos marimbondos. Atrevido, fui lá e interrompi o silêncio do lar deles. Que pedrada! Nunca corri tanto. Quase caí na lagoa, mas como dó a raiva daqueles bichinhos. Costas inchadas.

Minutos depois, estava lá chutando outras pedras, puxando diálogos com as pinturas do céu, mergulhado nas cores do silêncio.

Eu não sabia, mas essa queda pela prosa, migalhas da fala, pelo canto do grito, que tudo isso chegou antes de eu completar dez anos.

Escrevo para me descobrir. Às vezes, enroscar-me ao silêncio.

... farelos por aí ...


Fiquei um longo tempo sem escrever. Esqueci como se faz isso em um diário. Sei que não há problema com esse tipo de perrengue.

Se não quiser perder seu tempo, abandone a leitura dessa joça. O que lê é o rascunho de um sujeito em esboço.

Antes de chegar a esse formato, escrevi a lápis, num caderno velho, tudo com a certeza de que ninguém leria. Eu não tenho leitores. Meus dias estão contados. Os seus não?

— Pare de ler e me dê isso aqui. Vamos continuar a consulta.    

O mundo está se destruindo sob o efeito de antítese.

— Do que p senhor estava falando mesmo?

— O último “Auto da Compadecida”, montagem de um grupo foda (perdoe-me, esse tipo de palavra não pode) lá de Belo Horizonte, teve cenas vaiadas e aplaudidas ao mesmo tempo.

– Ahn? O senhor está bem?

— Não era uma partida de futebol, doutor? Aonde é que é que isso vai parar? Parece que a vida só tem dois lados, vencedor e perdedor, sol e lua, dia e noite. Gente, e o tempo para pensar, refletir e viver e...

— As vaias e os aplausos te incomodaram?

— Que pergunta idiota é essa? Ainda bem que estudou para ouvir. Quero meu diário de volta.

— Continue escrevendo, você precisa. Até semana que vem ...

A vontade era mandar esse psicanalista do Sul para a cidade de Bacurau.

... farelos por aí ...

– Pode excluir esse cara.

– É mesmo. Ele não se manifesta.

– Nem vai sentir falta. Não vai fazer diferença.

O “cara” de quem eles estavam falando sou eu. Escrevo esta crônica para comunicar que acabaram de me excluir de mais um grupo do WhatsApp. Não me importo. Eles estão cobertos de razão.  

Será que alguém parou pra pensar que há grupo demais?

Grupo da família, do trabalho, da pelada do domingo de manhã, grupo de estudos, das amigas, da galera das antigas, dos pais da escola, grupo da zoeira (ai que canseira!) 

Devem achar que sou um péssimo usuário dessa rede social. Não aprendi a dar bom dia todo dia. Sou um péssimo abreviador de palavras. Demoro um tempão para responder. Aprendi a mexer com as carinhas recentemente. Aquelas figurinhas, então? Sem chance. 

Falta jeito, tempo, habilidade. Por isso mesmo, agora, estou apenas em 08 grupos e mal mal dou conta de acompanhar três deles. Graças ao bom Deus, meus amigos são pacientes e compreendem esse meu lado assim ... antissocial na rede.

Você está em quantos grupos?

Não, filha. Não podemos dizer que liberdade é sinônimo de independência na história do Brasil.

Nunca fomos independentes de Portugal. Aquilo lá foi uma péssima encenação de um moço desmiolado, zoeira com nossa cara.

O Brasil também nunca foi descoberto, mas sobre isso falaremos numa outra hora.

— Então, não tem independência?

— Também não tem liberdade.

—  Cê num tá exagerando, pai?

— Há um monte de poderosos gritando pela nossa prisão. “Venham! Podem levar tudo, inclusive, nossas riquezas, a Amazônia, a educação, a pesquisa, a cultura. Venham acabar de vez com esse povo que país de verdade é ...

— Por que cê tá falando assim?

— Você acha que tenho liberdade para falar e escrever o que quiser? Não posso emitir minha opinião em todos os espaços. Não posso.

— Liberdade de expressão?  


Arte: Danielle Noronha 
Há tímido por toda parte. O sofrimento deles é representado de inúmeras formas. Em algumas situações, da infância à velhice.

– Filha, o senhor Wanderley está lhe cumprimentando. Você não vai dar um bom dia?

Nem boa tarde. Muito menos uma boa noite. Meio desajeitada, a garota levantava a cabeça e olhava para o porteiro da escola. Levou quase dois anos para lhe dirigir a palavra. Motivo? Timidez.

O tímido tem dificuldade para pertencer a quaisquer grupos. Eles encharcam as camisas, transformam as mãos em fontes trêmulas de suor, quando vão apresentar um trabalho na escola ou na empresa.

Ao receber um elogio sincero, ele rapidamente tem na sua face o mais vermelho dos vermelhos. Conhece alguém assim?

Por vias da circunstância, o tímido é o espelho da insegurança. Basta uma dupla se afastar para uma conversa em particular sobre qualquer coisa, o tímido pensar ser o assunto de tal prosa.

Luis Fernando Veríssimo, um dos maiores cronistas do Brasil, sempre demonstrou timidez nas entrevistas.

Clarice Lispector declarou algumas vezes que era uma “tímida ousada”! É possível imaginar isso de uma das musas da literatura?

E como seria o encontro de dois tímidos? Um desastre para ambos. Travam-se.

Contaram-me certa vez que Mia Couto, escritor moçambicano, em viagem ao Brasil, encontrou nos corredores da editora Companhia das Letras com o cantor e compositor Chico Buarque. Disseram-me que foi uma sucessão de tentativas, vários ensaios. Nenhum conseguiu render assunto. Muito sem jeito, tudo ficou em um “oi”.

O tímido sofre para fazer uma ligação telefônica e resolver assuntos aparentemente banais.   
Desconfio que a sensibilidade advenha das observações que regem seu “estar no mundo”.

Desconfio que a decisão de um tímido é mais sábia do que de uma “pessoa saidinha.” Antes das ações, ele tece possibilidades, reflexões.

Desconfio que há um tímido lendo as impressões deste cronista intrometido, mas que jamais vai me procurar para dizer que não é nada disso, que estou equivocado.

O tímido precisa de um tempo maior, diferenciado. Um tempo para aproximar. Ele é acanhado.

“Por conta da timidez, aprendi a beijar com os olhos”

Está lembrado do início desta crônica? Sabe aquela garota que gastou o maior tempão para cumprimentar o porteiro?

Em uma manhã dessas aí, ela despediu do pai, sacou a grana do lanche no bolso da mochila e saiu em disparada rumo à cantina da escola. Lá comprou a merenda sozinha. Voltou toda contente para a fila. SOZINHA. 

Comprar um lanche pode parecer a ação mais simples do mundo, mas para uma criança tímida, isso é sinônimo de grande conquista.

Talvez a garota não saiba, mas aquele foi um dos dias mais felizes para seu pai e sua mãe (essa também é muito tímida).

E depois daquela cena majestosa, fui motivado a escrever esta crônica com o intuito de propor aos extrovertidos a ideia de que um dia toda timidez será elogiada.

Você  já admirou um tímido hoje?   


Imagem disponível em: http://educarparacrescer.abril.com.br/comportamento/como-ajudar-adolescente-lidar-timidez-743074.shtml

Dan sempre foi um jovem da paz, um dos camaradas mais respeitados da nossa quebrada. Menino prestativo, “brother responsa”. É do tipo mano cerol: “quando é para somar forças, o cara cola com a gente nas paradas”, afirmam seus colegas.

Por se envolver com muito goró, o pai de Dan recebeu uma passagem definitiva de São Pedro logo cedo. Com isso, Dan e Suellen, sua irmã caçula, nunca tocaram em copos com álcool. Eles cuidam dos amigos que dão pt (perda total) nos bailinhos do fim de semana. 

— Dan, nunca te vi bravo – comentou certa vez minha companheira.      

— Só fiquei uma vez. E se o Farelo souber como tudo rolou, ah, vai me colocar na crônica da semana.

— Pode ficar à vontade, mano. A crônica é sua!

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Estava tranquilo, de boa na minha casa. O telefone tocou e era minha mãe chorando. 

— Já liguei pra polícia, o cafajeste já me deu dois socos nas costas, tá doendo demais, parece que o ordinário tá com o demônio. Como moro pertinho de sua casa, me socorre, filho, pelo amor de Deus!

— O Moisés tá alterado?

Pedi que ela num esquentasse não, era pra ficar trancada no quarto, que logo, logo eu ia tirar os demônios do corpo do senhor Moisés, o emplasto que minha rainha colocou dentro de casa e com ele teve mais um fiote. Aonde ela tava com a cabeça arrumar um traste daqueles? Mais cedo ou mais tarde aquele filho da puta ia agredir minha rainha. Dito e feito. O sangue foi todo pra cara, passei a mão num facão enorme e já fui espalhando meu ódio pro lote inteiro ouvir. Os moradores dos outros barracões colocaram a cabeça pra fora. Ê povo que gosta de ver as cores do inferno alheio, viu?

– Cê num é muito homi, Moisés?

– Não, Dan. Não foi nada. Foi só uma discussão entre...

– Abre esse portão que cê vai conhecê homi de verdade, seu vagabundo.

Minha rainha tava chorando no quarto, dava pra ouvir. Moisés com a fala mansa  tentando colocar pano quente na violência. Nisso, gente, o carro da polícia piou no final da rua. Joguei o facão pro lado pra não dá bandeira e fui atiçando pra perto do portão o valentão.

Do nada, gente, Moisés abre o portão assoviando, todo engomadinho, de terno e gravata, como se nada tivesse acontecido. Sai o Moisés com a Bíblia debaixo do braço direito, dizendo que ia ao culto, era dia de adorar ao Senhor.

— É aqui que mora o senhor Moisés Soares?

— Sim. É esse moço bem vestido, aqui, seu policial. Pode levar. Bem que ele podia ficar na cadeia por uns bons tempos.

O senhor Moisés não sabe até hoje que a polícia foi quem o salvou naquele meu dia de ódio. Mas se encostar um dedo na minha rainha, gente do céu, num vai tê conversa. Vou liquidar de vez ...

Dan pediu um copo d’água, depois de relembrar esse seu dia de fúria. Mais calmo, ouviu da minha companheira:

— O mundo precisa de mais Dans!      

... farelos por aí ... 

Crédito da imagem: https://veja.abril.com.br/entretenimento/periferia-invade-as-telas-com-na-quebrada/

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