Mostrando postagens com marcador Crônicas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crônicas. Mostrar todas as postagens


Há tempos eu não passava doze horas com uma pessoa tão singular.

— Deixa de ser generoso, homem.  

— Nossa, pai, assim não dá. Com mentiras logo cedo?

— O que os leitores vão pensar de você? Rasga a verbo, sô. Conte a verdade.

Não tem jeito. Vou mandar real, tá ligado? (É assim que a rapaziada conversa comigo).

A mulher do Getúlio parece uma gatinha que caiu do caminhão de mudanças. Nunca vi ser tão vazio. Não se identifica com nenhum outro animal, no caso, ser humano.

A mulher do Getúlio se acha a tal. Assim que se sentou na nossa frente, ouviu as conversas atravessadas, as curiosidades da Clarice: “Ah, não suporto criança. Ainda bem que não sofri desse mal. Criança é só pra acabar com o corpo da gente, amor. Eu ia ficar toda feia. Que nada!” 

A mulher do Getúlio pensa que é rica. Ela achou um absurdo ter que viajar num busão cheio. Só faltava gritar pra todo mundo: “Eu odeio pobre!”

A mulher do Getúlio reclamava do ar condicionado, dos banheiros das paradas. Nessas horas até o Getúlio alfinetava: “Você que não viu o banheiro dos homens”. Não, do preço das coisas a mulher não reclamava, só da qualidade.

A mulher do Getúlio gosta mesmo é de gastar. Vontade dela era ter fretado um avião particular e ter sumido do Brasil. Porque, minha gente, a mulher do Getúlio não sabe nada desse país.

— Essa mulher deve ter nascido no Quinto dos Infernos.

— Ouvi dizer que nem lá os diabretes deram conta das exigências dessa figura.

A mulher do Getúlio é loira. Naquela noite usava batom rosa gritante, estava com uma maquiagem extravagante. Segundo minha filha mais velha, parecia que até os cílios da mulher do Getúlio queriam deixá-la para trás.

Graças ao Deus da Paciência, (como todos queriam estar com fone de ouvido naquele carro!) tivemos a sorte de descer um ponto antes do casal; mas todos devem ter concluído a mesma sentença: como que o Getúlio aguenta? 

Que nenhum leitor tenha a experiência de viajar com a mulher do Getúlio.

... farelos por aí...

Crédito da imagem: https://www.estrelando.com.br/foto/2017/06/01/os-15-personagens-mais-odiados-do-mundo-das-series-194606/foto-5

Devo ter alguma espécie de ímã que atrai bêbados, loucos, estranhos e desajeitados para uma conversa. Tenho certo orgulho disso, mas nem toda hora, assim de bobeira, gosto de levar uma “batida policial”.

No trampo de “vassourinha” (aquele jovem que limpa as mesas, durante os bailes) o convidado passava a festa, no seu canto, calado. Já no final vinha puxar conversa comigo. Claro, o chef puxava minha orelha. “Nada de papo, viu?”

Desde os tempos de camelô, quando voltava pro barraco; era entrar um policial no busão e já pedia para levantar os braços.

Ah, por falar em policial, passei um aperto daqueles, esses dias.  

— Gente do céu! Foi isso mesmo que eu ouvi?

A senhora não pediu licença para seus colegas de trabalho. Foi falando, antes de se levantar. Caminhou em direção a nossa mesa. A lanchonete inteira parou pra ver no que ia dar.

— Quem é quem aqui?

Que abordagem! Fiquei pálido. Minha esposa controlou a situação. Sorte minha ser casado com uma atriz.

— Está tudo bem. Fique calmo. Não é com você dessa vez.

Ufa! A policial nem olhou pra mim. Ela se entendeu lá com minha esposa.

— Que meninas lindas! Quem é a Clarice? Quem é a Cecília?

Pronto! Agora minhas filhas também estão enroladas. Que sina?! Só pensei. Até tinha me esquecido das associações com a Meireles e a Lispector. Pai bobo.

— Você trabalha com literatura? É das Letras?

— Meu esposo que é...

A policial, muito simpática, pediu desculpas pela abordagem, por incomodar nosso lanche, por chamar atenção de todos ali presentes. A moça se apresentou. Falou com entusiasmo da graduação em Letras, do mestrado que está fazendo na área de Linguística. E falamos de um monte de coisas, menos do capitão. Do capitão não. Graças a Deus que nem entrou no assunto. Só no pensamento.

A policial se despediu, depois de ter passado aquele susto tremendo nesse bobo que vos escreve. 

— Eh, papai! Cê ficou com medo da policial?!

Criança não perdoa mesmo. E o povo da lanchonete riu muito. Eu não sabia onde enfiar a cara.

... farelos por aí ...


Crédito da imagem: https://br.fotolia.com/tag/%22fundo%20verde%22

O terminal rodoviário estava um caos dos diabos, aquele calor dos últimos tempos dilatando a impaciência dos passageiros, falta de informação, mal humor dos "pseudo-ricos", atraso das partidas e lá quase no pé da escada, bem pertinho da porta do ônibus, ELA.

Clarice pediu água mineral, Cecília queria comprar chicletes, a esposa vigiando as bolsas, eu ali sem acreditar que era ELA. 

Será que ELA vai me cumprimentar? porque tem ex que não está nem aí pra gente, tem ex que faz questão de esconder o rosto, fingir que a gente nem fez parte da vida dela. Na real? já tive ex que me maltratou com comentários tão indelicados, mas tão indelicados que cheguei a ouvir: “Ah, veja o que esse infeliz foi fazer da vida!”;

E ELA?

Ah, não resisti. Não fiquei pensando demais, nem quis saber com quem estava, fui até a ex, todo espalhafatoso. Ela ficou toda surpresa, soltou o sorriso bonito dos velhos tempos, lasquei um abraço. Que abraço gostoso! 

— Nossa! Como suas filhas cresceram? Outro dia mesmo a Clarice estava nascendo.

— Eu não acredito que vamos viajar juntos!

— Vou viajar com meus pais. Tenho uma praia só minha, desde pequenina.

— Ah, não! Vocês vão do meu lado?

Ela com a mãe, à esquerda. Eu com a Cecília. Minha esposa com a Clarice na poltrona da frente. Bem, o pai da ex atrás na poltrona atrás da minha.

Você não faz ideia do quanto a família da ex nos ajudou. Eu não conhecia o trajeto. Sem a presença deles, certamente cometeria muitos erros, como por exemplo, descendo no terminal errado.

Naquelas horas de viagem, entendi porque a ex é uma pessoa tão engajada, crítica, reflexiva. Conversamos muito sobre diversos assuntos. Às vésperas de descer nosso destino, fiz uma revelação para mãe e filha (ex):

 — Toda vez que vou trabalhar com Clarice Lispector, lembro-me da sua filha. Ela despertou um grande interesse pela autora.

— Verdade! Tanto que vira e mexe está no sebo atrás dos livros da escritora.

— Clarice Lispector é uma das minhas favoritas, professor.

Aquele depoimento me levou às nuvens. Por um instante, esqueci completamente das mais de 12 horas de viagem. Aquele relato foi mais do que bálsamo para os ruídos daquela amanhã, foi a prova de que vale a pena ser um farelo por aí. A descoberta de que despertei o gosto pela literatura (em especial, a brasileira) em uma jovem, como a ex, me deixa assim... emocionado.

... farelos por aí ...


Crédito da imagem: http://nilcatalano.blogspot.com/2010/09/explosao-em-cores.html
A releitura de uma determinada obra é sempre mais esclarecedora do que o primeiro contato. E a riqueza de um texto literário está justamente nas infinitas possibilidades de interpretação que oferece aos leitores. É essa fonte inesgotável que transforma uma obra em um clássico. Ou, no mínimo, uma referência. Sempre foi assim. Não há novidade.
Por quantas dezenas de anos “Dom Casmurro” iluminará as páginas do Realismo captado por Machado de Assis? Há como pensar a configuração da mulher na literatura brasileira sem se encantar com as dissimulações de Capitu?  
E por falar em mulheres e literatura, ela não pode ficar de fora. Quem? Clarice na teia! Diga-se de passagem, que a obra “Todos os contos”, que venceu um importante prêmio nos Estados Unidos, em 2015, vem dando o que falar entre os fãs. 
          Em breve, vou conhecer esse maravilhoso acervo; mas até mergulhar nesses mares, comunico-lhe que andei esfarelando algumas crônicas da autora nos últimos anos. 
         Os leitores das antigas sabem disso. Não minto. Sou clariciano e pronto. Qual é mesmo o nome da minha caçula? Está explicado. Porque, como sabe, (ou vai saber um dia) Clarice é personagem, escritora e uma das figuras mais ecléticas da nossa literatura. Uma amiga disse que Clarice é rainha (dá licença, meu?) em outras palavras, estamos falando de uma escritora clássica.    
Bem, tenho que alertá-lo(a): o que lê nessas modestas linhas é uma espécie de delírio noturno na janela do cotidiano. É que quando leio os textos dessa autora, sinto-me dentro de um sonho. É como se estivesse ora dentro de uma pintura de Salvador Dalí, ora na serenidade das pinceladas de Monet. 
Sinto-me tateando agulhas no silêncio da tarde. Parece que ela tinha uma câmera capturando nossos dilemas e intimidades o tempo todo. 
         Às vezes, fico procurando abrigo nos braços do amigo mais próximo. Será que devíamos ter amigos em todos os lugares? Ou seria um amigo para todos os lugares?    

E você quer saber por quê? (Hora de ler em voz alta)

Clarice me ensinou que há um vazio em todos nós. A solidão é o que une a humanidade. Certo. No universo somos apenas uma unidade. Verdade. Verso único, íntimo, prosa leve no breve grafite que risca a realidade.
 A solidão está em todos nós. E é só com o outro que podemos enfrentá-la. Para isso, foi preciso muita gente: toda Humanidade. Precisamos do outro para compreender o mundo. Precisamos amar o outro e, assim, transcenderemos o Universo. 
   
Informação desprezível da crônica (Leia-a, se quiser)

 – É nisso que dá ficar lendo clássicos! O menino ficou proético – comentou tia Cristina (aquela da sarradinha no ar, lembra?), que agora passou a ler todas as crônicas antes da publicação.




+