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Para João Eustáquio - BH Run


Acordei atrasado, a noite mal dormida ainda pesava. Para piorar, martelava na cabeça a pulga do recado importante que não foi dado — aquele aviso que deveria ter chegado no momento exato ao destinatário. Que danado!

 

A manhã já nascia com sabor de pressa e erro.

 

Saí em disparada. Quando menos esperei, a constatação gelada:

 

Putz! O relógio da corrida ficou para trás. O gadget que registra o exercício!

 

Para completar a sinfonia do desastre, no desespero de sair rápido, acabei amarrando o tênis um pouco mais apertado.

 

Ainda bem que só fui sentir a pontada de incômodo e a leve dormência lá pelas tantas voltas do treino.

 

Quase finalizando o percurso, veio o golpe de misericórdia. Um apito no celular: bateria esgotando. Quinze, quatorze, treze... Antes da tela se apagar, deu tempo de registrar a atividade feita até ali. Ufa! Um sopro de vitória em meio ao caos.

 

"Santo dos Corredores! Santo dos Atletas Amadores!", implorei mentalmente: "Que minha manhã finalize bem e que a tarde e a noite sejam, por favor, melhores!"

 

Porque, até aquele ponto, a impressão que ficava era que eu nem deveria ter saído para a rua. Aquele era um dia de cama e silêncio.

 

Ao retornar, a mulher ouviu tudo, do recado perdido ao tênis apertado, com a atenção de quem conhece os tropeços do cotidiano. E arrematou com a sabedoria que só ela tem:

 

"Verdade! Não era para você ter calçado o tênis. O universo acenou para você ficar. Mas NÃO... você foi lá, contra todos os imprevistos e descuidos, e treinou. E é isso que importa."

 

Depois dessa conversa, meu dia não apenas melhorou: foi salvo.

 


– Senhor Alfredo, estou com uma entrega pro senhor. Não tem ninguém em casa.

 

– Tem como você deixar na casa de grade aí da frente? Por favor, procure pelo seu Ronaldo. Muito obrigado!

 

Pelo menos dessa vez o entregador ligou, porque da vez que tive que retirar a encomenda no depósito foi uma canseira daquelas.

 

No carro cheio de crianças do teatro, deixei um aqui, o outro desceu no quarteirão de lá, fiz questão de guardar segredo. A destinatária da encomenda não fazia ideia da surpresa.

 

Depois de guardar o carro, tomar uma xícara de café, esqueci de bater lá na residência do seu Ronaldo. Até que Júlia, sua netinha, bateu no portão:

 

– Tio Farelo! Tio Farelo! O moço deixou isso pro senhor.

 

Era um embrulho simples, desses bem comerciais, padrão, no interior envolvido com plástico bolha. Senti.


Agradeci a vizinha e o seu Ronaldo que se encontrava do outro lado da rua. Nem bem fechei o portão e um berro:

 

– CLARICE! CLARICE! Olha só o que chegou. Vem ver, depressa...

 

Assim ela fez, largou desenho, pincel e tinta, o chinelo ficou pelos caminhos e VAPO! Pegou a encomenda e ali no escuro entre a garagem e a sala foi abrindo o pacote e...

 

Clarice sorriu dos pés à cabeça. Pulos de satisfação. Encantada. A menina comemorou com o corpo inteiro. Imediatamente foi para o canto do sofá da sala. Sentou-se e começou a leitura. O mundo parou.

 

Na sala, aos olhos dos outros moradores, tudo se movia em câmera lenta, ao redor daquela pequena leitora.

 

Em seguida, ajeitou a almofada, esticando os pés e, segurando o livro, eis que se desligou por completo da realidade.


A mãe que assista à telenovela dela pra lá. A irmã que ficasse de papo com as amigas nas redes sociais. O pai que fosse preparar a salada da noite.

 

Segundo a mãe, ela só fez uma parada na viagem, antes de dormir. Nesse tempo, fugiu para o escritório e lá começou a desenhar, inspirada, de forma livre. A leitura!

 

A forma como recebeu a encomenda, o mergulho nas páginas, os traços das histórias que também vai compondo, tudo isso nos enche de alegria.

 

A menina Clarice ainda não sabe, mas naquele outubro foi ela quem presenteou os pais na Semana das Crianças.


... farelos por aí ... 


Por passar um certo tempo com as obras de um artista, a gente vai sendo contaminado, ficando doente.

 

Bastou a pergunta de uma jovem estudante para que eu me desmanchasse em incertezas. A pergunta?

 

“Por que nem sempre é tempo de ler Clarice Lispector?”

 

Às vezes, as palavras apenas surgem como tinta, em cores ainda sem nome, à disposição na paleta de um pintor expressionista.

 

Leio para me despertar de sonhos intranquilos da noite imprecisa que se estende por muitas semanas.

 

Leio para voltar à superfície, frágil, mesmo deixando as raízes dos meus dilemas à mostra.

 

Leio por estar cansado de fugir. Existir dói menos que pensar. Leio para encontrar uma gota de força na rua do reencontro. 


Leio e escrevo porque preciso me reencontrar.

 

Será que com essas linhas de nuvem eu consegui responder?



 "Porque o silêncio em si é como o som dos diamantes que podem cortar tudo!” escreveu Jack Kerouac. Arrisco-me a afirmar que o porta-voz da Geração Beat, do final dos anos 1950, tinha consciência do alcance do seu timbre nas gerações futuras.

 

Primeiras constatações foram o impacto sobre a contracultura e o movimento Hippie da década seguinte. Embora seja um escritor muito conhecido, sobretudo pela publicação da obra "On the Road" (Pé na Estrada, 1957), que ainda não li, escolhi ficar apenas com a frase inicial. Em alguns momentos, uma frase basta, em outros, uma palavra.

 

Se possível, releia-a mais uma vez, antes de seguir. O mundo contemporâneo não tem lidado muito bem com os tempos de silêncio. Em certos contextos, quaisquer segundos sem som representam uma batalha.

 

A impressão é de que fazer silêncio, calar-se diante daquilo que a gente não sabe, não conhece, silenciar-se para ouvir melhor, tem sido cada vez mais difícil.

 

Parece-me que só vale o silêncio dos outros, a recusa, o afastamento. Cansei dos gritos das redes na artificialidade das telas. Cada vez mais venho apreciando o silêncio dos encontros e a paz das descobertas.


Nesse templo, apreciar os sons do silêncio pode nos levar para outras terras dessa comparação: som dos diamantes/silêncio. E bendito seja o livreiro Paulo Fernandes que, na manhã de domingo, nos trouxe Jack Kerouac!

 

A partir dessa citação, nossa! Uma série de representações do silêncio foram pousando nas páginas azuis da minha rotina. Porque além do poder de cortar que nem diamante, o silêncio tem peso.

 

Porque há o silêncio que nos derruba e o que nos levanta, o da poeira e o da lama. Não sei por que, mas sempre imaginei a eternidade como uma das dimensões do silêncio. Tá vendo aí, Paulo? Olha só pra onde a gente está indo...

 

E por fim, ou o início de um sim para as singularidades do silêncio – contrariando – quero que fique com uma cena: o estouro de uma bolha de sabão diante das asas de um beija-flor.


... farelos por aí ... 

 



Os vencedores sempre encontram o endereço com a maior precisão do mundo. Falar que se trata de um bairro de divisa não cola mais.

 

Em uns boletos, consta-se que sou morador do Conjunto Carajás; em outras contas, a residência está localizada no bairro Pedra Azul.

 

De uns tempos pra cá e com a permanência do CEP, deixei de lado essas fronteiras, aceitando como veredicto o segundo. Pedra Azul tem mais sustância para a vadiagem, para aqueles que gostam de bater pernas por aí. Antes de sentar-se para escrever esta migalha, eu estava vadiando por aí.

 

Aqui as ruas têm nome de pedras e águas. Tenho a magia de morar entre a Granito e a Safira, acima das Águas Marinhas. Para se ter uma noção, a mercearia mais antiga do bairro se encontra nas Águas Formosas. São nomes interessantes!  

  

A principal referência para quem vem de longe é a Cidade de Minas, rua mais larga da região. Lá tem posto de gasolina, uma renca de botecos e algumas hamburguerias. Com seus 1.300 metros quase planos, atua também como pista de caminhada e corrida.

  

 Ao contrário dessa relativa extensão, minha casa fica em uma rua que compõe apenas um quarteirão, quase uns 300 metros e olhe lá... se dá isso. Embora seja classificada como preciosa, brilho metálico, a coitada é sempre confundida com outra pedra, a pirita. O nome da nossa?  

 

            Marcassita. Uma pedra leve, frágil, além de possuir uma estrutura cristalina diferente da tal pirita. Um antigo morador me explicou que marcassita é um sulfeto de ferro. Com fotos no celular e lembranças das lições de Química (FeS2), mostrou algumas imagens da pedra que dá nome a nossa rua.  

 

            Ao ir atrás de mais mistérios da tal pedra, descobri que a marcassita também é conhecida por seu visual vintage; possui capacidade de adicionar um toque elegante e sofisticado a joias.

 

Longe de ser um ourives, uma coisa posso garantir: nossa rua é uma joia rara! Desde que aqui chegamos, há uns 17 anos, essa rua possui um brilho para cada estação. Quem foi embora, ainda sente saudade.

 

Não se sabe se tem a ver com a atmosfera das cidades do interior. Ora parece com as rotinas de uma vila, ora fica a impressão de que todos os moradores se conhecem intimamente:  

 

– Pode deixar sua neta brincando aqui com minha filha, enquanto o senhor vai à farmácia.

 

– Vai chegar uma encomenda aí para mim, posso pedir para entregar na sua casa?

 

Seu Geovane caminha com a esposa antes de levar as gaiolas de canarinho para fora. Seu Lopez com as três lindas netas aguarda o motoqueiro com a broa de fubá quentinha para o café da manhã. Dona Rosa rega as plantas do passeio, sorrindo-nos com um bom dia. O vidraceiro brinca com seu cão caramelo levado, no fim da tarde. O frentista que, nos finais de semana se veste de Homem-Aranha para vender pipas na Cidade de Minas. A dona Carolina que prepara um lanche especial para os rapazes da coleta, aos sábados. Seu Neco fez três casinhas para os cachorros da rua, ainda por cima dá comida, banho, vacina e passeio das 17h.  

 

Pedra no nome, brilho nas memórias, cor dos encontros, brinde da partilha, Rua Marcassita.  


    ... farelos por aí ...

 


– O homi tá cuspindo bala na cozinha. Era hora já de tá na rua atrás de mais uns quilômetros pra cumprir com o tal do desafio.


– Como sabe que ele tá nervoso?


– Ah, isso é fácil de perceber. Como sal com esse traste aí um tempo bão, menina.


– Já é vem a senhora de novo querer maltratar o pai. Só fiz uma pergunta boba e...


– Boba sou eu que tem que aturar aquela praga fazendo essa barulhada, antes das sete. Vai quebrar outra vasilha daqui a pouco, vá escutando aí. Ahh o jeito que o infeliz joga os talheres na pia. Perigoso nem olhar se tem algum copo lá.


– Então é assim que a senhora identifica que ele tá bravo, chateado?


– Fica pior do que a gente naqueles dias. E o diacho tem que descontar na pia lotada? Ô vontade de descer lá e chamar na xinxa. Ô vontade.


– Bobeira, mãe. Até sair da cama, se preparar e descer, meu pai já vai tá calmo. Deve ter perdido hora, não achou um copo limpo ou o pó de café acabou.


– Verdade. Pensando pro bem, vamu deixar isso pra lá. Vamu dormir mais, tamu de férias.


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