– Não vá. Não vá ainda – disse a mulher, um pouco sem jeito, segurando meu braço direito.

Um pedido daqueles, naquele horário, o restaurante enchendo.
Quero apenas que veja a foto que tirei na última manhã – entusiasmada, entregou-me o celular.
A princípio, gostei da luz. Uma ponta da igreja, à esquerda, um tronco e nada demais. Pensei.
– Sabe quem sou eu na imagem?
Era a primeira vez que eu me sentava à mesa com a tal mulher. Um por acaso. Não fazia a ideia do que ela perguntava.
– Não precisa refletir muito. Eu sou a solidão da ave. Nessa idade, moço, eu só aprecio as extensões do vazio...
No caixa, descobri que Dona Robertinha, com quase oitenta, vai lá todos os dias (no mesmo horário) para se encantar com a alegria das crianças da escola.
Dona Robertinha é a melhor imagem do meu dia.

Caderno Azul
imagem: farelo

Outro dia eu quase convidei o Frentista Sorriso para tomar uma água de coco.

Era véspera de feriado, desses prolongados, bom para reunir toda família. O posto estava vazio, gasolina nas alturas.

– O senhor deseja mais alguma coisa? – quis saber, olhando para o capô.

– Apenas isso por hoje.

Digitei a senha, recolhi o comprovante e enquanto ajeitava o cartão, a despedida inusitada:

– Bom feriado pra você e sua família!

– Pra você também. Ah, se tiver churrasco lá amanhã, fico aqui até às 14h. Cê vem me buscar?

Assim, ele encerrou o atendimento, com o sorriso mais escandaloso do planeta.  

– Da próxima vez, o senhor vai abastecer com ele, certo? – indagou a caçula no banco de trás.

 

Caderno Azul

... farelos por aí ...

imagem: Pixabay

Era o canto de pássaro mais estridente da rua. Passei o portão e lá estava o canarinho em cima do poste, que fica de frente pra nossa casa. Cantava de estalar.

De repente sai da casa dele lá o seu Geovane, nosso vizinho e dono do amarelinho fujão.

– Toda vez que foge, ele não vai pra longe.

– Que canto incrível! Há quantos anos não ouço o canto de um canarinho, meu Deus!

– O senhor sabe por que ele tá cantando assim, afinado, alto, de parar o quarteirão?

– Sei não.

– Em conversa de passarinhos, ele está chamando a fêmea. Por isso que esse canário sempre voltou.

Nessa hora, eu não sabia se apreciava o canto ou buscava entender a história de amor que o moço me contava:

– ... ele só vai se a companheira for.

 


Caderno Azul

... farelos por aí ...

Crédito da imagem: Yassir Abbas

 


O seu Ronaldo ficou encantado com o par de tênis, o presente azul da garota de 12 anos.  

– Vai ver que foi por conta daquela música All Star que o Nando Reis fez pra Cássia Eller.

– Na verdade, não. Eu vi no filme Eduardo e Mônica com minha mãe.

– Êta família pra gostar do Anos 1980.

 


Caderno Azul

... farelos por aí ...

Crédito da imagem: Dan Cristian  Păduret 

21 de julho de 2022

 

Querida Amanda Ribeiro,


há três semanas venho, de alguma forma, me preparando para este momento. Por conta de tantos insights, os reels não foram suficientes... (mas a gente vai continuar lendo seus versos por lá, viu?)


o lance é que sua Máquina dispara muitos flashes e a gente sai criando cenas e séries e vem o desejo de fazer um filme, será que você entende?


o percurso pelos “cômodos preferidos” (imagine duas personagens escolhendo o cantinho favorito do lar), um close naquele presente-lembrete, o bilhete do “bolso na calçada”, ao ritmo do jazz, hein?;


e a poeta ali costurando a distância, apresentando aos espectadores a instância ... em versos inquietos livres que nem abelha zunando  por tudo quanto é parte da Floresta, beira e centro da cidade, memórias; o instante da palavra aqui-acolá na cozinha, banho, quartos, na “casa de estar”. A essa altura, sua cameragirl ficando louca:


– Tudo isso tá aí no livro? Como vamos gravar esse filme?


– Fique calma, menina. A verdade é de que de cinema quem entende mesmo é a Amanda Ribeiro, a compositora desses cantos.


– E o que você vai fazer?


– Aquilo que mais nos aproxima das entrelinhas do labirinto da poesia.


– Já entendi, pai. Quando você vem com essas paradas de estrelinhas... Só não sei se ela vai curtir.


Isso eu também não posso afirmar, mas em segredo aqui (Amanda, a Cecília estava falando das leituras do seu mais recente livro naquele Caderno Azul, lembra?)

Agora, minha amiga, você reconhece: só sei dizer com palavras, primeiramente nas linhas do tal brochura, de formato 140mm x 200 mm, 96 hojas; depois no horizonte das antigas fichas pautadas e, posteriormente, aqui no blog.


Outra revelação: escrevo-lhe da cozinha, após duas xícaras de café. E você não imagina o quanto estou contente com a leitura de seus poemas, a satisfação, surpresa em cada esquina dos seus temas: o amor, a paixão, o ir-vir-e-o-devir da epopeia sempre à disposição cotidiano e que só as poetas e as cronistas captam (você).


Que maravilha ... quão mágico é ser recebido nas três portas da sua casa-livro! As epígrafes nos acolhem com tanto carinho que acabam espalhando a vontade de a gente explorar cada cômodo no ritmo das estações do ano. Queremos ficar!


Pode lhe parecer um pouco confuso, mas com o elegante parafuso de suas minúsculas na cadência gostosa das vírgulas – tudo flui e evolui – os leitores vão sempre se encontrar no fuso de sua poética; do olhar para o céu, deitadas em “repouso”, aos mil pastéis de queijo na pastelândia, seus versos nos abrem janelas para o “infinito ... particular”.   


ATENÇÃO! ATENÇÃO! Com este ensaio malucão, acabamos de receber uma notificação: Ao ficar ciente do interesse em gravar um curta-metragem, a editora Peirópolis informa:


“Máquina de costurar concreto”, de Amanda Ribeiro, compõe a “Biblioteca Madrinha Lua”, coleção de poesia contemporânea inspirada numa das mais importantes poetas brasileiras do século XX, a mineira Henriqueta Lisboa (1901 – 1985). Este projeto é coordenado pela professora e escritora Ana Elisa Ribeiro. 


 





Era o meio do atendimento. A vendedora consultava o preço um preço para mim, quando atrás do monitor, ele apareceu:


– Com licença, minha senhora...


Confesso que o que veio depois não ficou na memória. Fiquei estático. O que pode ou deveria parecer uma simples abordagem, aos meus olhos, foi MAG-NÍ-FI-CO.


O nome daquele cliente, de poucas palavras, mas gestos nobres, é Roberto. A mãe dele, que estava na estante vizinha foi quem nos contou. Eu e a vendedora ficamos encantados com a educação do Roberto.


Roberto conta apenas com dez anos... e é um leitor voraz e o Brasil precisa de mais meninos assim. Você não acha?



Meu pai começou o dia ouvindo Bach. Quando isso rola, tá pegando algum lance grave aí.


O coroa só ouve Sebastian Bach em situações extremas: êxtase, dor, alegria ou revolta. Não importa, desde que seja muito expressivo.

Pelo volume do som, imagino que o homem vive alguma parada bem sinistra, tá ligado?

Pode parecer loucura, mas o povo aqui se comunica por meio da música.

Agora, por exemplo, o coroa está lá em baixo, no porão, quase terminando a playlist só de Bach. Até o final do dia vai nos contar o que aconteceu.

Com o papai, aprendemos que o melhor momento pode ser encontrado entre a música e o silêncio.

...
farelos por aí ...

 

O que será do futuro dessa menina? Que Deus a abençoe! Porque a julgar por agora, há dificuldade para descrever as atitudes da criança. Para se ter uma ideia, ela jamais aprovou o termo pré-adolescência.

 

Lá pela casa dos dez anos já era fã do Queen, mas nunca negou o gosto pelos clássicos da música: Chopin, Mozart, Bach e Beethoven.

 

Quando o assunto é livro ou filme, seu gênero favorito é a biografia. Adora saber dos bastidores da vida e da obra dos artistas. Com isso, sempre deixa escapar algumas curiosidades nas reuniões familiares.  

 

Por falar em família, recentemente, a menina aprontou uma boa com o pai.

 

“Vai chegar um livro que a mamãe comprou na internet. E é você quem vai ler para mim.”

 

O pai, coitado, um pouco encantado com a disposição das duas, ali sem entender nada, soltou um “Está bem”. A menina já tem doze anos e podia ler sozinha, não?

 

“Segundo o autor, o livro é dedicado aos pais. É para você estudar e aplicar os conceitos que estão lá. Você não vai se arrepender”.

 

Não vem ao caso indicar o nome do livro; mas é com orgulho e gratidão que o moço vai explicitando os conceitos do tal livro para a filha. Para isso, ele vem aproveitando as tardes de sábado.

 

A menina, a cada encontro, vem registrando as lições no caderno vermelho. Dizem por aí que até na segunda e terça de Carnaval, os dois estavam discutindo o comportamento de alunos e familiares que não dão a mínima para os professores.

 

Pelo visto, desse capítulo aí que eles estavam estudando, foi um folião de ideias. Com licença, vou ter que parar de escrever, pois ela acabou de me chamar na sala: “Vem logo, pai. Quero que você veja a budista que falei outro dia”


...

farelos por ... 

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