Galo Maluco de trás pra frente

 


O penúltimo lugar da fila. Uma das moças do caixa esticou a cabeça:

– E aí, quando cê vai trazer a geladeira de novo?

Todos olharam como se eu fosse um daqueles técnicos enrolados. Sem pensar, mas que lá  no fundo considero que a foi a sentença mais sincera.

– Não vejo a hora de estar com a geladeira aqui.

Passado o susto daquela inesperada cobrança, respirei aliviado e os outros clientes também. E a moça encontrou a brecha para desenrolar os motivos de aguardar com tamanha ansiedade a presença do tal eletrodoméstico.

– Na minha casa, por insistência de uma tia maluca lá de São Paulo, todos aprenderam a gostar de ler muito cedo. A mulher só presenteava a garotada com livros novinhos... de dar gosto.

Nessa hora, o povo da fila pensou que a moça era quem tinha ficado louca. O que aquela conversa tinha a ver com a geladeira, meu Deus, Nossa Senhora? O outro olhou pra trás para ver minha reação e desistiu de vez abanando a cabeça, como que diz – “Ih, lascou!”

– Que coisa boa! Toda família tinha que ter uma senhora assim feito sua tia.

– Ah, a tia Ivete ensinou a primaiada toda a ler com O galo maluco. Dá um google e vai ver a capa desse livro.

À medida que ia passando os produtos dos outros clientes e ia chegando minha vez, ela aumentava a velocidade das palavras quase que para garantir a próxima estadia da geladeira na porta da padaria.

– Moço, meu filho aprendeu a ler nas últimas férias com tia Ivete. Ficou mais de um mês lá e chegou aqui lendo "O galo maluco" de trás pra frente.  

Ali foi a cartada final, ela me quebrou ao meio, triturou todas as prováveis desculpas. Em poucos segundos, tive que revirar a agenda e deixar pelo menos para o mês mais próximo:  

Não peço pra mim nem pro meu esposo como da primeira vez, mas sim  pelo Bernardo. O moleque vai se esbaldar com novas histórias. Vê lá o que pode fazer com o pessoal do instituto...

– No próximo domingo, sem falta, às 08h aqui, quero que o Bernardinho venha abrir a geloteca e escolher os primeiros títulos para levar pra casa.

  Eu confio no senhor. O senhor tem noção do que isso representa pra gente? Faz ideia do quanto vamos ...

– Posso retirar o cartão? Espere, por que  você está chorando, moça? Está tudo bem?

– Sim! Sim! Nada não. É de alegria. É de gratidão por vocês do ... nome mesmo do instituto?  

- Livros em todo lugar

Na rua de volta pra casa, minha companheira foi a certeza de que mesmo com todos os desafios, estramos no caminho certo.

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