Se você está chegando agora neste espaço e não sabe quem é o Alfredo Lima, eu lhe recomendo ouvir o podcast acima. Trata-se de uma série de homenagens que o Paulo Fernandes do canal "Ler é criar asas" criou ao longo da última semana de maio de 2021.

... farelos por aí ... 


 


Queria ter vivido melhor,

porém a mediocridade sempre me foi farta

e generosa nos caminhos que escolhi para viver.

Queria ter sido mais alegre,

porém a tristeza sempre foi companheira fiel

nos dias intermináveis de abandono.

Queria ter amado mais as pessoas que conheci

ou que fingi conhecer,

porém, na maioria das vezes,

eu também não me conhecia.

Queria ter andado mais livre,

porém, algemado à ignorância, perdi muito

tempo tentando voar sem sequer saber andar.

Queria ter lido mais livros,

porém, analfabeto de ousadia, passei

muitos anos enxergando pelos olhos

adormecidos de outras pessoas.

Também queria ter escritos mais poemas

do que bilhetes pedindo desculpas,

porém as palavras sempre me vieram

como culpa e quase nunca como estrelas.

Queria ter roubado mais beijos e abraços

protegidas pela magia da infância,

porém cresci muito cedo e a timidez sempre

me foi uma lei muito severa a ser cumprida.

Queria ter pensado menos no futuro,

porém o passado simples

nunca foi o melhor presente

e a eternidade sempre me pareceu coisa de gente

que tem preguiça de viver.

Queria ter sido um homem mais humilde,

porém a vaidade e a ganância sempre

me cercaram de mimos e coisas que até hoje

Queria ter pregado mais a paz,

porém, como um covarde, gastei muita munição

tentando atingir amigos e desconhecidos

que não usavam coletes à prova de balas

nem blindados no coração.

Queria ter sido mais forte,

porém rir dos vencidos e bajular os mais ricos

sempre me pareceu o caminho mais curto

para o esconderijo secreto das minhas fraquezas.

Queria ter dito mais a verdade,

porém a mentira sempre foi moeda de troca

para comprar o respeito e a admiração

das pessoas fúteis de almas vazias.

Queria que o mundo fosse mais justo,

porém, avarento de nascença, fui o primeiro

a esconder o sol na palma da mão,

antes que o vizinho o fizesse,

e mesquinho por vocação

escondi as noites com lua

para que os poetas não a cortejassem.

Queria ter dito mais besteiras,

porém fui desses idiotas amantes

das proparoxítonas e sujeito oculto

nos bate­-papos de botecos de esquinas,

onde a vida não acontece por decreto.

Queria ter colhido mais flores,

porém o medo de espinhos

afugentou a primavera e,

outono que sempre fui,

plantei inverno quando a terra pedia verão.

Hoje, queria ter acordado mais cedo,

porém temo que, pra mim,

seja tarde demais.

 

Título: Porém

Fonte: O poema está no livro “Colecionador de pedras”, de Sérgio Vaz.

 


A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de ‘culinária literária’.

 

Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate, feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como ‘chef’. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo – porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

 

As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideais começaram a estourar como pipoca.

 

Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.

 

Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé…

 

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira.

 

Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

 

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa – voltar a ser crianças!

 

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão – sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

 

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! – e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

 

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. ‘Morre e transforma-te!’ – dizia Goethe.

 

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

 

Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da UNICAMP, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas ‘piruá’ é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: ‘Fiquei piruá!’ Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior.

 

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua vida perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

 

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira” …

 

Título: A pipoca

 

Fonte: Esta crônica está presente no livro O amor acende a lua.

 


 

— Hoje vamos ao baile!

 

Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido um vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

 

De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre? Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia já evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração de namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

 

— Nem sei o gosto de um cheiro.

 

Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, o vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

 

— Então não passa um arranjo no rosto?

 

Um arranjo?

 

— Sim, uma cor, uma tinta.

 

Ela se assombrou. Virou costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

 

— Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

 

— E os meninos?

 

— Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

 

Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

 

— Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

 

— Você sabe que eu nunca danço...

 

E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilio de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

 

E ela lá foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem, sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino:

 

— Onde vai, marido?

 

— Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

 

— Vou consigo, Justino.

 

— Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

 

Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

 

Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela ainda ali estivesse, necessitada de um empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

 

Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rasto. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido.

 

Adormeceu nos degraus da escada.

 

Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

 

— Justino?!

 

Em sobressalto, correu para dentro de casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, no soalho da sala, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

 

 

Título: O perfume

 

Fonte: Conto presente no livro “Estórias Abensonhadas”, de Mia Couto.

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