09h41

 Caro D, quando surge uma ideia, venho aqui e a deixo aqui registrada.

Já que nós professores da rede privada não somos ouvidos pela imprensa, pela prefeitura, pelos políticos e, em alguns casos, nem pelos nossos próprios diretores; por que não escrever um livro de diário, retratando tudo que nós estamos passando nesse épico ano de 2020?

Será que alguma editora estaria disposta  a publicar o que nós estamos enfrentando?

Caso não queira, quero que fique registrado que o que nós estamos enfrentando é uma baita crueldade.

Se por um acaso alguém, além do autor,  estiver lendo esta página de diário e se interessar em saber o que estamos passando, entre em contato pelo blog.

Apresente-se e trocaremos algumas ideias.  

 

09h12

Desde a tarde de ontem, venho sentindo o prazer de ler um livro pelo puro lazer. “Bolero de Ravel”, de Menalton Braff, um romance que estava na lista de espera desde 2012.

Vou degustá-lo, aos poucos, em cada capítulo, perdendo-me nos labirintos do narrador-personagem em sua viagem obscura.

Estou apreciando tanto a narrativa que até entrei em contato com o autor via um e-mail atrevido, urgente. Caso o Menalton responda, contarei aqui.   

A caminhada ficou para o período da tarde/noite. É o Dia das Crianças e eu minha esposa ficamos por conta de preparar, no capricho, o banquete desta data tão especial.

Celebrar todas as datas especiais faz parte da tradição da minha família. Ao contrário do que os extremistas dizem por aí, meu caro D, ritual e tradições são essenciais ao fortalecimento dos laços.

Dê-me licença que agora vou ali comer uma fatia de melancia.

... farelos por aí ...

PS: a imagem diz respeito ao concerto de tango em uma releitura da peça musical "Bolero de Ravel". 

 


11h21

 Fiz de tudo para me manter longe da tela do computador no dia de ontem. Um sábado, a saber.

Estive-me envolvido com lápis, borracha, lapiseira, caneta, papel ... muito papel. Foi incrível, meu caro D!

 O dia sorriu para mim como a saudação:

– Seja bem-vindo à revolução analógica!

Estou pensando a respeito dessa revolução, após ler o artigo sobre o uso inadequado das redes sociais.

Desconectado, longe das redes nessa semana, estou aproveitando para curtir minha família, nossa casa.

Ah, meu caro D, nesse quarto dia, andei em ritmo razoável 4 KM e corri meu primeiro KM de modo ininterrupto.

Devagar, com dificuldade, vou avançando e saindo da penumbra.

Ando “podando meu jardim”.

... farelos por aí”

 10h52

Bach é um dos nomes que mais tem frequentado meus últimos dias.

             Bach da Ave Maria que ilumina meus bons dias ao Universo, passando por Jesus, a 

alegria dos homens; até chegar aos florais, pingados de gota em gota na minha garganta. 

Garganta santa!

“Exausto”

 

Eu quero uma licença de dormir,

perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar

a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida

foi o profundo sono das espécies,

a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.

 

             Com este poema de Adélia Prado, caro diário, você entende porque me receitaram Bach.


            Todos os professores, no momento, precisam voltar ao estado semente.

 


... farelos por aí ...

 


 

                                                                                18h51

Ao final da tarde, tomei a decisão de me desconectar das redes sociais entre os dias 10 e 18 de outubro.

A prova está no meu Instagram: @farelodequiat

Ao saber dessa minha atitude, minha filha de 10 anos respirou aliviada e disparou para a irmã caçula.  

– Graças a Deus vamos ter nosso pai de volta. Pelo menos uma semana ficaremos sem aquele robô, Cla!

Isso dói. Dói muito, meu parceiro. Só quem é professor da rede particular no contexto da pandemia do novo Coronavírus compreende o que estamos passando. 

(Sem comentários)

Nessas horas, dou graças a Deus por também ser escritor e poder conversar com meus ilustres leitores, como ocorreu no final dessa manhã.

Hoje fui muito bem acolhido pelos leitores do 6º Ano, alunos do Colégio Espanhol Santa Maria, de BH. Foi mágico, distinto e encantador.

Só para você sentir o gostinho do quanto foi especial, uma aluna me recebeu cantando e tocando “Aquarela”, de Toquinho e Vinícius de Moraes.


Além das perguntas inteligentes e comoventes sobre meu penúltimo livro, “Um estranho para o céu”, recebi quase no final do bate-papo uma parte da Nona Sinfonia de Beethoven. 

Inacreditável! Um garoto aí na casa dos seus 11 anos tocou essa peça no violão. Mágico!

Agora, à noite, vou fazer minha caminhada; pois não foi possível pela manhã. Dormi mais do que a cama. Resultado do 1º dia de exercício (ontem).

Eh, Diário, para quem não dormia... eu até sonhei, meu parceiro.

 

... farelos por aí ...

 

 


 05h35

Momento da minha primeira caminhada de 5 km, após um longo período, longe das pistas.  

Ao longo dos prováveis 40 minutos, redescobri três das minhas paixões: Ler / Escrever / Correr.

Minha esposa está coberta de razão, ao afirmar: “Você tem que que voltar a correr”.  

Ela anda preocupada comigo, pois há o excesso de tecido adiposo, há o stress das infinitas demandas da Educação, ainda reina a grande pausa nos projetos de incentivo à leitura e palestras presenciais.  

Ela é quem me chamou de novo à vida. É sempre assim! Quando percebe que estou muito inquieto, dá o toque: “Está na hora de você começar a escrever o próximo livro”.  

Sabe, Diário, você já me salvou algumas vezes nesses 07 anos. Que não seja diferente dessa vez, ok?!

Se por um acaso, pintar algum outro leitor por aqui, ele vai conhecer alguns perrengues da minha vida profissional, parte dos meus encantos e desencantos.  

MAS que fique claro: escrevo para mim mesmo.

... farelos por aí ...

 

 

 




Há sessenta dias não escrevo uma linha.

Hoje por impulso, pelos ventos de um adágio do Ferreira Gullar, fui atirado, jogado na rua. Você está se perguntando: “Como assim?”

Só foi assistir aos vídeos no meio da manhã, entre prova para elaborar, casa para arrumar e outras mil e uma tarefas...

Bem, eu não sei explicar o porquê, o que rolou, nem quero.  

Verdade: eu senti uma vontade enorme de registrar uns GRITOS.  

Em silêncio, desci a escada do barracão, corri em direção ao portão. Pá! Eu estava na RUA!  E só foi um grito.

Não tinha ninguém para ouvir. Ai! E como aquilo me fez bem. Tive a impressão de sair de um banho lento e gostoso, daqueles que lavam a alma, sabe?  

De vez em quando um ou outro carro passava e eu ia atravessando as frases do poeta.

Que realidade estou inventando? Por que um verso é capaz de provocar tudo isso em plena manhã?

 Insight? Impulso? Arte. Pulso.

Peço licença, mas agora vou ali comprar um apontador e mais lápis. Tenho que transcrever a página deste dia que nos escreve.

Por que?

“Eu escrevo porque tenho o prazer de manifestar uma coisa que eu descobri”



... farelos por aí ...


Desculpe-me, leitor(a), mas a confissão que vou fazer não será do seu agrado, talvez.

Se por um acaso, você torcer o nariz, eu vou compreender. Você joga no time da maioria.

Confissão: eu gosto da segunda-feira!

Eu não sou louco. Depois de conviver com alguns japoneses, passei a curtir a segunda.

De acordo com alguns alunos, disparo um “bom dia” diferenciado, cheio de energia.  Não sei explicar.  

Sei que a última segunda-feira, por exemplo, entrou para minha História da Gratidão (mais à frente vou explicar melhor essa tal HG).

Nos primeiros minutos das sete, uma aluna me procurou na sala dos professores:

— Comprei um presente para você, Farelo!

Nossa! Poderia ser uma dúvida, crítica, reclamação, um comentário sobre a Disgreta Voadora (vulgo Enem).

— É diferente de tudo que li.

Nessas horas fico sem graça. Sem jeito, compreende? Meio bicho do mato. Será que merecia um presente tão distinto assim?

— Gostei tanto que fui à livraria e comprei um exemplar para cada pessoa especial do meu convívio. Espero que você goste também.

Bateu o primeiro sinal.

Recebi o livro da jovem. Primeiro, senti seu cheiro. Em seguida, encantei-me com sua lombada, cheio de brilho, dourada. Percorri os relevos da fonte, na capa.

Bateu o segundo sinal.

Tive tempo de ler os textos da quarta capa. Eram escritores e críticos apresentando a obra do escritor português que eu nunca havia lido.

Bateu o terceiro e último sinal.

A aula já ia começar. Abracei a aluna, em sinal de gratidão. Despedimos-nos. 

A vontade era não ministrar aula nenhuma naquela manhã. Não fazer chamada. Não passar exercícios. O desejo era sentar debaixo de uma árvore, desligar-se do tempo para poder ler o livro inteirinho.

Só no meio da tarde foi possível me perder naquelas páginas em branco, com desenhos em azul e metal, feitos pelo próprio autor. Ah, o nome dele: Valter Hugo Mãe. O título do livro? “O paraíso são os outros”.

Na manhã de terça, saí mostrando livro para todos os amigos. Na quarta, não consegui guardar as alegrias desse encantamento. Quando percebi estava na frente do computador, redigindo esta crônica.

Eis um capítulo da minha HG. Se você tivesse que escrever um livro sobre sua História de Gratidão, com qual dádiva você começaria?   

... farelos por aí ... 

  
           

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